Pinheiro: críticas ao Estado brasileiro |
A reação das autoridades brasileiras às chacinas nos presídios do Amazonas e de Roraima, que deixaram um total de 89 mortos, evidenciam o "conluio do Estado brasileiro com as organizações criminosas", considera o diplomata e especialista em direitos humanos Paulo Sérgio Pinheiro.
A
reação inclui a avaliação do massacre em Manaus como "acidente" pelo
presidente Michel Temer; as contradições do ministro da Justiça, Alexandre
de Moraes, ao negar a responsabilidade do governo federal nas chacinas; e
declarações do governador do Amazonas, José Melo, e do Secretário Nacional da
Juventude, Bruno Júlio, que tentaram justificar a morte de
presos.
Para
Pinheiro, tais posturas revelam um "Estado carcomido e contaminado"
pela corrupção e por "acordos não escritos" com as facções criminosas
que comandam os presídios brasileiros.
"Não
interessa ao atual governo, aos empresários e parlamentares comprados por
organizações criminosas mudar essa situação", disse o diplomata em
entrevista à DW Brasil. "O que
acontece nas prisões é só a ponta do iceberg do tráfico de drogas, da lavagem
de dinheiro e da impunidade generalizada em relação às organizações
criminosas."
Pinheiro,
que é chefe da comissão independente da ONU responsável por investigar
violações dos direitos humanos na guerra da Síria, disse se surpreender com a
reação do Brasil ao fato de que boa parte dos presos mortos foi decapitada.
"Ora, por cinco decapitações em Palmira, na Síria, todo mundo fica
horrorizado."
DW Brasil: Como o senhor avalia a
posição do governo brasileiro de se eximir da responsabilidade sobre os
massacres em Roraima e Amazonas e também de legitimar a morte de presos?
Paulo Sérgio Pinheiro: A posição não poderia ser pior. Esse
silêncio do chefe de governo, que esperou vários dias para falar – e para falar
bobagem – ocorre porque o governo federal está acuado pelas organizações
criminosas. Em muitos estados, as facções fizeram acordos com o governo nas
eleições e, depois, para impôr a paz dentro dos presídios. Houve um acordo
não escrito com esse circuito criminoso. Hoje, o temor do governo é que,
como já está acontecendo, apareçam mais revoltas em outros estados.
No
caso de Manaus, o escândalo maior é que, além das execuções, houve 30
decapitações. Ora, por cinco decapitações em Palmira na Síria todo mundo fica
horrorizado. Aqui, como no Iraque, jogaram futebol com as cabeças dos presos. E
o governador do Amazonas ainda justificou que eles "não são santos".
Que história é essa? Eles não são santos e então mereciam ter sido executados?
Como
pode num presídio ter uma placa na cela indicando que ali é a sede do PCC? Quer dizer, quem hoje manda
no sistema penitenciário brasileiro são as organizações criminosas. Há um
conluio entre o Estado brasileiro e as facções.
O
que acontece nas prisões é só a ponta do iceberg do tráfico de drogas, lavagem
de dinheiro nos bancos e empresas de fachada que não são investigadas. Há uma
impunidade generalizada em relação às organizações criminosas. Esse é um dos
piores legados da ditadura que permanecem no Brasil, mas que a democracia
consolida e aprofunda.
DW: Os governo federal e estaduais
estão acuados pelas organizações criminosas e fazendo acordos com
interlocutores criminosos. Como as autoridades podem combater essas facções e
tomar de fato o controle sobre o sistema carcerário?
PSP: A questão primeira é fazer
uma investigação sobre os negócios. A coisa mais simples é adquirir
bloqueadores de celular nos presídios e impedir a comunicação dos presos com o
mundo externo. Em Manaus não tinha isso, os presos têm celulares à vontade. Em
segundo lugar, é preciso investigar o que ocorre fora da prisão.
As
organizações criminosas financiam mandatos de vereadores, deputados estaduais e
federais e senadores, e o Estado brasileiro sabe de tudo isso, como já
mostraram relatórios da Polícia Federal e a CPI do Crime Organizado. Sem contar
a possível ingerência das facções no sistema judiciário, influenciando
sentenças, absolvições e liminares em favor desses grupos.
Não
tem solução mágica. Isso é algo que já está consolidado desde a volta à
democracia. Não interessa ao atual governo, aos empresários e parlamentares
comprados por organizações criminosas mudar essa situação. O Congresso não tem
interesse em denunciar seus apoiares. Boa parte dos mandatos dos políticos são
comprados pelas organizações criminosas. Todo o Estado brasileiro está carcomido
e contaminado. E essa contaminação é ainda maior devido à ilegimitimidade do
atual governo.
DW: Então, não é possível no
momento imaginar um sistema carcerário livre de acordos obscuros?
PSP: Temos a terceira maior
população carcerária do mundo, com quase metade dos presos ainda sem
sentença. É algo inadministrável. É preciso esvaziar o sistema carcerário.
Agora o ministro incompetente da Justiça está propondo um plano de
emergência, que é só para enganar. Uma reforma depende de várias frentes – o Judiciário,
a polícia, a administração penitenciária e investigações,
principalmente sobre lavagem de dinheiro.
E
o atual governo não tem nenhuma legitimidade ou autoridade moral para fazer isso. É
um governo de réus. Não dá para resolver a questão com um novo plano para o
sistema penitenciário quando se delega às organizações criminosas o controle da
administração das prisões.
DW: E os efeitos das parcerias
público-privadas para a administração dos presídios?
Isso
já foi um desastre completo nos EUA e está sendo feito em surdina no Brasil. Só
o fato de em Manaus a empresa que administra o presídio receber 4.100
reais por preso, um valor superfaturado, mostra que o objetivo principal dessas
empresas é o lucro. É perigosíssimo o Estado delegar sua responsabilidade para
empresas que visam ao lucro.
DW: O senhor acha possível a implementação de uma política de
desencarceramento no Brasil?
Não
dá para pensar num modelo, mas medidas urgentes são necessárias, como reduzir o
número de presos sem sentença, que hoje são 250 mil. O sistema punitivo não
pode ser baseado apenas na reclusão. Nosso Judiciário é racista e baseado na ideologia da elite
conservadora dominante, que acha que pode mandar os pobres, negros e miseráveis
à vontade para a prisão.
Eles
não têm acesso ao Judiciário. A Defensoria Pública está presente em poucos
Estados, ou seja, eles nem têm advogado para se defender. Para mim, nada vai
acontecer sem que regularizem a situação desses mais de 200 mil presos.
DW: E o papel da comunidade
internacional? Diversos casos de violações nos presídios, incluindo as
chacinas no Amazonas e Roraima, já foram apresentados à Corte Interamericana de
Direitos Humanos.
Mesmo
que sentenças não sejam proferidas, responsabilizar o Estado brasileiro por
essa situação é muito salutar. A ação da sociedade civil deve ser no sentido de
denunciar o governo brasileiro como responsável pelo atual cenário. Mesmo que
não resulte em condenação, esse exercício é muito pedagógico para a sociedade
brasileira. É importante para as vítimas também. As ONGs têm que ajudar essas
famílias a processarem o governo do Amazonas e serem ressarcidas pela perda dos
seus familiares. Quando se tem corrupção deslavada em todos os níveis do
governo brasileiro, a luta é difícil.
Fonte: Carta Capital
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