Canções do compositor cearense debateram, desde os anos 1970, a alienação,
as relações mercantis e a própria indústria cultural. Mas alguns procuraram
enquadrá-lo como apenas um rapaz romântico.
Por Alberto Sartorelli
A capa do jornal O Povo de Fortaleza (edição online) e uma nota do governador do Ceará, Camilo Santana, anunciaram há pouco, neste domingo (30/4) a morte do compositor e cantor Belchior. Ele tinha 70 anos e, segundo as informações, estava na cidade gaúcha de em Santa Cruz do Sul (RS), 150km a oeste de Porto Alegre, quando faleceu, ontem à noite. Não foram ainda divulgadas as causas da morte, mas o governo cearense decretou luto de três dias. Segundo O Povo, Belchior será sepultado em sua cidade natal, Sobral. No texto a seguir, escrito pouco antes do 70º aniversário do compositor cearense, Alberto Sartorelli destaca algo pouco examinado na crítica da obra de Belchior — a constante denúncia da alienação e da mercantilização do mundo. Pouco notadas à época em que suas canções foram compostas, estes traços tornavam sua poética ainda mais atual agora.
A capa do jornal O Povo de Fortaleza (edição online) e uma nota do governador do Ceará, Camilo Santana, anunciaram há pouco, neste domingo (30/4) a morte do compositor e cantor Belchior. Ele tinha 70 anos e, segundo as informações, estava na cidade gaúcha de em Santa Cruz do Sul (RS), 150km a oeste de Porto Alegre, quando faleceu, ontem à noite. Não foram ainda divulgadas as causas da morte, mas o governo cearense decretou luto de três dias. Segundo O Povo, Belchior será sepultado em sua cidade natal, Sobral. No texto a seguir, escrito pouco antes do 70º aniversário do compositor cearense, Alberto Sartorelli destaca algo pouco examinado na crítica da obra de Belchior — a constante denúncia da alienação e da mercantilização do mundo. Pouco notadas à época em que suas canções foram compostas, estes traços tornavam sua poética ainda mais atual agora.
Que tal a civilização
Cristã e ocidental…
Deploro essa herança na língua
Que me deram eles, afinal.
- BELCHIOR, “Quinhentos anos de quê?”
(Bahiuno, 1993)
Cristã e ocidental…
Deploro essa herança na língua
Que me deram eles, afinal.
- BELCHIOR, “Quinhentos anos de quê?”
(Bahiuno, 1993)
A imagem de Belchior vendida pela indústria
cultural é a do artista brega, de voz fanha e bigodão – uma figura! Poucos
prestam atenção nas letras. A forma simples de suas canções possibilitou sua
assimilação pela indústria fonográfica, que criou-lhe uma imagem caricata e
reproduziu suas músicas em massa, entre shows, premiações e programas de
auditório, fazendo tábula rasa de seu conteúdo crítico. Belchior foi reduzido a
um mero cantor romântico.
Em estética, o artista engajado politicamente deve
escolher entre dois caminhos: o da forma artística de difícil assimilação – e
remuneração! – para o público e para a indústria cultural; ou o da forma
mais simples, de fácil assimilação do público e do show business. Ambas as
opções estão fadadas ao silêncio político: uma não apela, a outra tem seu apelo
anulado pela caricaturização. No fim, a indústria cultural impede que qualquer
artista seja levado muito a sério, por seu ostracismo ou por sua redução a uma
imagem vendável.
A especificidade de Belchior é a sua consciência
perante esse processo todo. “Aluguei minha canção / pra pagar meu aluguel / e
uma dona que me disse / que o dinheiro é um deus cruel / […] hoje eu não toco
por música / hoje eu toco por dinheiro / na emoção democrática / de quem canta
no chuveiro / faço arte pela arte / sem cansar minha beleza / assim quando eu
vejo porcos / lanço logo as minhas pérolas” (TOCANDO POR MÚSICA, Melodrama,
1987).
Belchior demonstra uma compreensão total do
processo de nivelamento – por baixo – da cultura por parte da indústria
cultural, dificultando demasiado a ocorrência de composições com alto grau de
complexidade – os artistas que se propõem a tal correm sempre o risco da
miséria material e do esquecimento. Os próprios arranjos dos discos de Belchior
são bem simples, com o teclado tendendo ao “engraçado”. Não é da mesma maneira
em relação às letras, sempre de uma profundidade abissal e crítica ácida.
Belchior, antes de músico no sentido geral, é um
compositor de canções. Cada autor encontra uma forma para se expressar: o
ensaio filosófico, a pintura não-figurativa, a ópera, a canção. A canção foi a
forma adequada que Belchior encontrou para transpassar seus pensamentos. É
preciso ter em mente, ao pensarmos a obra de Belchior, um autor de vasta
erudição, de poesia refinadíssima, conhecedor das línguas latinas e da
literatura clássica, e um artista engajado politicamente de maneira
radicalíssima. A partir da forma canção, Belchior oferece uma visão do Brasil e
do mundo que pouquíssimos filósofos nascidos em nossas terras puderam
vislumbrar. Como diz Nietzsche, o homem verdadeiramente de seu tempo sempre
está à frente de seu tempo. É o caso de Belchior.
Uma das críticas mais ferrenhas do cancionista
sobralino é contra a arte alegre, moda da época nos anos 1960-70. O filósofo
Theodor Adorno, em sua Teoria Estética (1969) diz que a arte
se utiliza de elementos da vida enquanto seus materiais; se a vida social é
cindida pela divisão do trabalho, que separa o homem de sua produção e da
natureza, e impede a felicidade enquanto reconhecimento recíproco entre sujeito
e objeto, a arte que imita essa vida deve ser triste, como a própria vida. A
arte alegre seria, então, ideológica, uma falsa verdade. A Bahia alegríssima de
Caetano Veloso dos anos 1970 (a triste é de Gregório de Matos) não passa de
logro, ilusão. “Veloso / o sol não é tao brilhante pra que vem / do norte / e
vai viver na rua” (FOTOGRAFIA 3X4, Alucinação, 1976). Surpreendente o jogo de
ambiguidade: “veloso” pode ser tanto um adjetivo do Sol, velando pelo migrante
e suas dificuldades na metrópole, ou assumir outro sentido completamente
oposto, identificado com o próprio Caetano enquanto imperativo moral – “Veloso
(Caetano), veja!, para quem sofre, o sol não é tão brilhante quanto dizes”. Ou
então esta outra: “Mas trago de cabeça uma canção do rádio / em que um antigo
compositor baiano me dizia / tudo é divino / tudo é maravilhoso / […] mas sei
que nada é divino / nada, nada é maravilhoso / nada, nada é sagrado / nada,
nada é misterioso, não” (APENAS UM RAPAZ LATINO-AMERICANO, Alucinação, 1976).
Chamado de “antigo”, pois já havia deixado de ser
vanguarda e caído no pop, encontramos mais uma crítica a Caetano e sua
composição “Divino Maravilhoso” (1968), em parceria com Gilberto Gil e que foi
imortalizada na voz de Gal Costa. Vale notar, sem dúvida, que a crítica de
Belchior a Caetano provém de alguma admiração: em entrevista ao Pasquim em
1982, Belchior diz que Caetano Veloso é o melhor letrista da MPB, “o autor da
modernidade musical no Brasil”. Todavia, é com enorme verve materialista que
ele fortemente rebate a letra de Caetano – “nada é divino, maravilhoso,
sagrado, misterioso!”
O materialismo é um dos fundamentos da música de
Belchior. Seus grandes inimigos são os escapistas, os fugidios, aqueles que
diante de crenças metafísicas falam de uma vida reconciliada, feliz.
Musicalmente representada na Tropicália, essa ideia era disseminada pelos
hippies, com a cabeça feita por alucinógenos e um mix de espiritualidade. A
resposta do materialista é ácida [sic]. “Eu não estou interessado em nenhuma
teoria / em nenhuma fantasia / nem no algo mais / nem em tinta pro meu rosto /
oba oba, ou melodia / para acompanhar bocejos / sonhos matinais / eu não estou
interessado em nenhuma teoria / nem nessas coisas do oriente / romances astrais
/ a minha alucinação é suportar o dia-a-dia / e meu delírio é a experiência /
com coisas reais” (ALUCINAÇÃO, Alucinação, 1976). É como se Belchior dissesse
que não é por estar num registro de experiência desconhecido que essa
experiência é necessariamente divina; especular metafisicamente sobre isso não
passa de teoria vazia. E que o importante não é o plano espiritual, mas este
aqui, o da miséria e do sofrimento, a realidade empírica e social.
Aos 29 anos em 1976, quando do lançamento do álbum Alucinação,
Belchior teve o tempo, a maturidade e o olhar aguçado para ver a dissolução do
sonho pacifista de liberdade. Os libertários de outrora logo se tornaram os
burgueses. “Já faz tempo / eu vi você na rua / cabelo ao vento / gente jovem
reunida / na parede da memória / esta lembrança é o quadro que dói mais / minha
dor é perceber / que apesar de termos feito / tudo, tudo o que fizemos / ainda
somos os mesmos e vivemos / como os nossos pais / […] e hoje eu sei / que quem
me deu a ideia / de uma nova consciência e juventude / está em casa guardado
por Deus / contando seus metais” (COMO OS NOSSOS PAIS, Alucinação, 1976). É
curioso notar que foi exatamente “Como os nossos pais”, na magnífica voz de
Elis Regina, a canção que colocou Belchior de fato no mercado fonográfico.
O radicalismo político de Belchior tem seu
principal fundamento na crítica do dinheiro em si e do trabalho alienado, uma
crítica mais profunda do que a mera crítica do capitalismo. O dinheiro é
tratado enquanto fetiche e abstração, mas também enquanto necessidade material
e fonte da corrupção moral. “Tudo poderia ter mudado, sim / pelo trabalho que
fizemos – tu e eu / mas o dinheiro é cruel / e um vento forte levou os amigos /
para longe das conversas / dos cafés e dos abrigos / e nossa esperança de
jovens / não aconteceu” (NÃO LEVE FLORES, Alucinação, 1976). E é o trabalho
aquilo separa o homem da natureza, exterior e interior, desumanizando-o. “E no
escritório em que eu trabalho e fico rico / quanto mais eu multiplico / diminui
o meu amor” (PARALELAS, Coração Selvagem, 1977). Por isso, o aspecto político
da obra de Belchior ultrapassa a defesa do socialismo centralista ou qualquer outro
sistema que envolva a burocracia. O problema é um problema fundamental,
primeiro, filosófico: a civilização. “Aqui sem sonhos maus, não há anhanguá /
nem cruz nem dor / e o índio ia indo, inocente e nu / sem rei, sem lei, sem
mais, ao som do sol / e do uirapuru” (NUM PAÍS FELIZ, Bahiuno, 1993). Profundo
como um antropólogo anarquista, um Pierre Clastres da canção, a crítica mira o
fundamento da coisa: a racionalidade ordenadora, dominadora, instrumental, como
fora notado por Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento (1946).
Belchior faz as denúncias fundamentais; sua arte é
hegemonicamente negativa. Todavia, há um resquício de esperança nessa visão do
Apocalipse, mesmo que a esperança fale sobre o que não deve ser. Nada absurdo
para o cancionista sobralino, pois para ele a sociedade é ruim por excesso, não
por falta. “Não quero regra nem nada / tudo tá como o diabo gosta, tá / já
tenho este peso / que me fere as costas / e não vou, eu mesmo / atar minha mão
/ o que transforma o velho no novo / bendito fruto do povo será / e a única
forma que pode ser norma / é nenhuma regra ter / é nunca fazer / nada que o
mestre mandar / sempre desobedecer / nunca reverenciar.” (COMO O DIABO GOSTA,
Alucinação, 1976). “Como o diabo gosta” deveria ter sido um hino da liberdade;
passou despercebida, sem ninguém contestar a “Pra não dizer que não falei das
flores” (Geraldo Vandré, 1968) o posto de canção de protesto.
Para Belchior, as palavras são um instrumento de
luta política, do despertar da consciência contra a opressão e seus mecanismos
ideológicos. “Se você vier me perguntar por onde andei / no tempo em que você
sonhava / de olhos abertos, lhe direi / amigo, eu me desesperava / […] e eu
quero é que esse canto torto feito faca / corte a carne de vocês” (A PALO SECO,
Alucinação, 1976). Para tal intento, sua canção deve ter um quê de dissonância
para com o sistema estabelecido, e em vez de cantar as “grandezas do Brasil”,
tem de denunciar os horrores de uma sociedade civil falida. “Não me peça que eu
lhe faça uma canção como se deve / correta, branca, suave / muito limpa, muito
leve / sons, palavras, são navalhas / e eu não posso cantar como convém / sem
querer ferir ninguém / mas não se preocupe meu amigo / com os horrores que eu
lhe digo / isso é somente uma canção / a vida realmente é diferente / quer
dizer / a vida é muito pior” (APENAS UM RAPAZ LATINO-AMERICANO, Alucinação,
1976). Se a arte é a mímese da vida, toda arte, por mais verdadeira que seja
enquanto parte, não dá conta do todo. A realidade é pior do que a tristeza que
a arte transpassa, e pior do que o pesadelo em sonho. É essa realidade que
importa mudar.
Um mecanismo utilizado nas letras e nas melodias de
Belchior é o da aproximação perante o ouvinte. Cearense, migrante, que na
cidade grande sofreu, tocou em puteiros, foi explorado para “fazer a vida”.
“Pra quem não tem pra onde ir / a noite nunca tem fim / o meu canto tinha um
dono e esse dono do meu canto / pra me explorar, me queria sempre bêbado de
gim” (TER OU NÃO TER, Todos os sentidos, 1978). É assim, por meio de sua
experiência de vida trash, que Belchior realiza o approche para com o ouvinte.
Ritmo simples e letra aguda, essa foi a aposta do cancionista para a
politização da massa. “A minha história é talvez / é talvez igual a tua / jovem
que desceu do norte / que no sul viveu na rua / que ficou desnorteado / como é
comum no seu tempo / que ficou desapontado / como é comum no seu tempo / que
ficou apaixonado e violento como você / eu sou como você que me ouve agora”
(FOTOGRAFIA 3X4, Alucinação, 1976). Ao dizer “eu sou como você”, Belchior
almeja arrebatar o outro como identidade, e trazer à tona a revolta contra a
opressão; seu público – alvo, escolhido a dedo, não é o intelectual burguês
letrado, mas o pobre que vai ao boteco depois da jornada de trabalho; ele o
reconhece como indivíduo ativo a ser despertado: o sujeito revolucionário. Mas
é claro que a indústria cultural fez de tudo para anular esse conteúdo: em
plena ditadura militar, transformaram Belchior numa personagem caricata, num
astro romântico, o galã de “Todo sujo de batom” (Coração Selvagem, 1977).
Belchior sabe, desde muito tempo, que “Eles
venceram / e o sinal está fechado pra nós / que somos jovens” (COMO OS NOSSOS
PAIS, Alucinação, 1976). Mesmo assim, não foi em vão seu esforço: além de todas
as canções citadas até agora, ainda há muitas outras de conteúdo crítico
ferrenho, como por exemplo “Pequeno perfil de um cidadão comum” (Era uma vez um
homem e seu tempo, 1979), uma epopeia sem o elemento épico, que fala de como é
vã a vida do sujeito raso, de gosto pouco refinado, cuja finalidade é voltada
ao trabalho; “Arte Final” (Bahiuno, 1993), grande canção sobre tudo aquilo que
deveria ter acontecido e não aconteceu; ou “Meu cordial brasileiro” (Bahiuno,
1993), que identifica a tese do “homem cordial” de Sérgio Buarque de Hollanda
(Raízes do Brasil, 1936), o elemento diferenciador do brasileiro, com o aspecto
consentido do nosso povo perante a política e o trabalho. Belchior teve sua
poesia impregnada pela frustração de não ter podido colocar em prática o
projeto por um mundo melhor, e sua música é mais verdadeira e mais
revolucionária por isso: não promete a felicidade, mas escancara a
impossibilidade dela no estado de coisas vigente.
No fim, em meio a essa cena sombria, nos tempos
dele e no nosso tempo de agora, ainda há alguma esperança. Para Belchior, mais
importante do que a filosofia ou a arte é a vida. “Primeiro o meu viver /
segundo este vil cantar de amigo” (AMOR DE PERDIÇÃO, Elogio da Loucura, 1988).
Sua filosofia é oposta à de Caetano: se para o compositor baiano, quem “mora na
filosofia” está separado dos sentimentos humanos, a filosofia de Belchior
provém da experiência; é pensamento vivo. “Deixando a profundidade de lado / eu
quero é ficar colado à pele dela noite e dia / fazendo tudo de novo / e dizendo
sim à paixão / morando na filosofia” (DIVINA COMÉDIA HUMANA, Todos os sentidos,
1978).
Marcado no cancioneiro latino-americano como uma de
suas grandes vozes, Belchior foi um mestre da poesia. Foi assimilado pela
indústria cultural, de fato, como Mercedes Sosa ou Che Guevara. Ele se jogou na
contradição da música popular, assim como qualquer um se joga nas contradições
da lógica do trabalho. Assimilado, mas não rendido. “Marginal bem sucedido e
amante da anarquia / eu não sou renegado sem causa” (LAMENTO DE UM MARGINAL BEM
SUCEDIDO, Bahiuno, 1993). Não é por ter sido reproduzido e veiculado pela
indústria cultural que Belchior perdeu totalmente a sua virulência: ela se
mantém viva em ouvintes atentos que, como nós, encontram nele uma manifestação
da consciência de seu tempo, e mais: a esperança de um mundo melhor,
inteiramente outro. Por agora, o importante é viver. “Bebi, conversei com os
amigos ao redor de minha mesa / e não deixei meu cigarro se apagar pela
tristeza / sempre é dia de ironia no meu coração” (NÃO LEVE FLORES, Alucinação,
1976). Belchior, como Nietzsche, diz sim à vida, apesar de tudo, e talvez por
isso tenha caído fora dessa loucura midiática que é a vida de um artista famoso
sempre sob os holofotes.
Em relação às dúvidas acerca de seu paradeiro, que
me perdoem os escandalizados, mas a letra já estava dada há muito tempo. “Saia
do meu caminho / eu prefiro andar sozinho / deixem que eu decido a minha vida”
(COMENTÁRIO A RESPEITO DE JOHN, Era uma vez um homem e seu tempo, 1979).
Nenhum comentário:
Postar um comentário