Como poucos, José Sarney merece o
epíteto “imortal”, comumente empregado aos membros da Academia Brasileira de
Letras. Literatura à parte, o ex-presidente parece mesmo politicamente
indestrutível. Nem cabe aqui mencionar a fortuna que o levou pelos braços à
presidência da República; menos ainda a mágica que produziu a ponto de se
eleger, anos a fio, senador por um estado que não é o seu, o Amapá.
Impressiona, o seu poder: a capacidade de renascer das cinzas, como se uma
fênix morasse em sua alma.
Teve importante
papel na transição do período autoritário para a democracia – após ter sido
linha de frente do regime. Viveu a glória, com as tabelas e tablitas dos
ineficazes congelamentos de preços, mas foi levado aos infernos após o fracasso
do Plano Cruzado; viu os “fiscais do Sarney” desaparecerem das ruas e sua
popularidade cair ao rés-do-chão; manietado por Ulysses Guimarães e pela
Constituinte, conseguiu garantir 5 anos de mandato.
Em 1989, ao
final do governo herdado de Tancredo, era o sparring favorito dos principais candidatos à
sucessão; virou piada e nome de CPI (a “CPI do Sarney”). Seus dois mais
agressivos adversários foram ao segundo turno, sem que qualquer aliado
superasse, nas urnas, as marcas do risível. Recebeu de Fernando Collor de Mello
a ira dos fanáticos.
Mas, sacodiu a
poeira: não apenas manteve o poder na província, elegendo aliados ao governo do
Maranhão, como também preparou a filha, Roseana, para um longo período de
domínio no Palácio dos Leões. Comeu o mingau frio da vingança com a desgraça e
o impeachment de Collor; regozijou-se com o néctar da “volta por cima”.
De volta ao
Senado, pelas mãos do povo do Amapá, fez-se referência, sacerdote dos conchavos
e dos acertos de bastidores. Presidente daquela Casa por 4 legislaturas, nomeou
ministros; definiu cargos e investimentos; contemplou amigos. Rompeu com aliado
Fernando Henrique Cardoso quando, em março de 2002, a Polícia Federal do tucano
flagrou a bagatela, para aqueles tempos, de R$ 1,3 milhão no escritório de seu
genro – o que viabilizou José Serra e enterrou as pretensões presidenciais de
sua filha.
Mais uma vez,
se imaginou que a oligarquia estivesse em vias de desaparecimento. Foi
resgatado, no entanto, por Lula. Retornou aos céus e se instalou como a pessoa
mais influente da República. Para Lula, Sarney não era uma “pessoa comum”; não
poderia ser medido com a mesma régua dos mortais. Estrela do PT, Aloízio
Mercadante, recebeu enquadrada histórica do companheiro Lula, nome da
preservação da excepcionalidade de José Sarney.
Também sob Dilma,
exerceu grossa influência; fez indicações, protegeu interesses, definiu
caminhos. Durante todo o período do PT, permaneceu incólume, sendo a “pessoa
incomum” de quem Lula falou. Por fim, em 2014, votou em Aécio – “o neto de
Tancredo”— como sinal de gratidão. Agarrou-se ao Senado até que a idade se
impusesse e o poder, aparentemente, desvanecesse.
Desistiu de
concorrer; contestada, sua filha viu a província mudar de mãos. Teve o nome
arrolado aos escândalos da Lava Jato; submergiu. A maledicência dos mortais,
chegaram a cogitar: “hora de morrer?”. Entregaria seu corpo e espírito às mãos
do Todo-poderoso, o juiz Sérgio Moro? Tola ilusão; claro que não.
Mais uma vez,
Sarney ressurgiu das cinzas. Nem se pode dizer que tenha se rearticulado –
ninguém retoma aquilo que nunca se rompeu. Também sob Michel Temer, o imortal
dá as cartas – agora, em parceria com Renan Calheiros, seu herdeiro de verdade;
como oligarquia e na pretensão à imortalidade. Em dupla, conseguiram emplacar
Edison Lobão – outro citado pela Lava Jato — como presidente da poderosa
Comissão de Constituição e Justiça do Senado, onde há de sabatinar — e aprovar
— o futuro juiz do Supremo, Alexandre de Moraes.
Tudo muda, a
terra gira. Mas, no Brasil, alguns fenômenos são perenes; sendo sempre o que sempre
foram: o poder de verdade. Sempiternos, sem começo e sem fim. Postados no altar
do tempo, de onde, ao que parece, jamais serão removidos. Sarney, esse Thor,
filho de Odin, é um deles.
Carlos Melo, cientista político. Professor do
Insper.
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