A crise atingiu as palavras
Da Coluna do Sarney
As
palavras estão numa crise pior do que a nossa crise política e econômica:
deixaram de significar o que realmente são, no milagre da língua. Levou
milênios para que fossem construídas pelos homens na junção dos sons. Além da
criação de linguagens alternativas, com abreviação de palavras e construções
anômalas, tão comuns na linguagem dos jovens, agora surge uma nova língua,
criada pela internet, sob a pressão do instante, que exige rapidez e
compactação para ganhar espaço e tempo.
Ouvi
outro dia de um professor de português, desses que fazem programa de rádio
procurando popularizar o ensino da língua, a seguinte advertência: “Se você
quiser errar no português, leia as manchetes dos jornais. São sempre erradas. E
não têm ordem direta, nem indireta. Só erros.”
Assim,
só para dar um exemplo, quadrilha não é mais dança de São João, tão alegre e
solta nos seus sons e rodopios, mas agora é sempre um ataque, um palavrão para
atingir adversários.
Lembro-me
do poema de Drummond Quadrilha, em que J. Pinto Fernandes entra na história,
sem ter nada a ver com ela.
Esta
é a lógica das denúncias que agora circulam nos jornais: todo mundo é
quadrilheiro. E nisso não respeitam nem presidentes, nem governadores.
É
como dizia um poeta maranhense da velha guarda, muito criticado por nós, àquele
tempo jovens: “É o jogo da semântica.”
Não
resisto a repetir o poema de Drummond:
João
amava Teresa que amava Raimundo que amava [Maria que amava Joaquim que amava
Lili
/
que não amava ninguém.
/
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
/
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
/
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
/
que não tinha entrado na história
Agora,
com esse mar de delações, chamadas de colaboração – já tive oportunidade de
dizer isto nesta coluna: com as palavras em crise, traidor transformou-se em
delator; delator, em colaborador; e colaborador será heroidador -, teremos que
reestudar a História para recuperar os personagens. Judas Iscariotes, por
exemplo, não é mais traidor, nem delator, e sim um colaborador que ajudou a
crucificar Jesus Cristo.
Bequimão,
o nosso grande herói (e o Maranhão é injustiçado, porque foi dele o primeiro
grito de independência do Brasil), teve como delator Lázaro de Melo, que agora
passa a colaborador.
Tiradentes
(estou me repetindo) nos deixou como herança, para desgraça do Maranhão, os
ossos de Joaquim Silvério dos Reis, que estão enterrados na Igreja de São João
e que agora passaram a ser de um colaborador.
É
como eu disse no princípio: as palavras estão em crise. E o dr. Rodrigo Janot
ficará na História por dar essas contribuições ao léxico brasileiro.
É
melhor ficar com o Drummond: quadrilha de dança e de amor, frustrado ou
realizado.
José
Sarney
Nenhum comentário:
Postar um comentário